Quantos médicos e administrações hospitalares não tiveram que lidar com argumentos religiosos na hora de tratar ou salvar um paciente? Se isso aconteceu com você, Bad Faith teria sido uma bela ajuda. Se nunca aconteceu, Paul Offit oferece um manual de como lidar com tão complexa questão.
No livro Bad Faith (que ainda não tem versão brasileira), Paul Offit, escritor, autor e professor de vacinologia e pediatria na University of Pennsylvania School of Medicine, desbrava uma nova trilha na abordagem da relação entre religião e medicina. Ele se coloca na perspectiva do médico, mas também na daqueles que optam por dar o papel de mártires a si ou a seus filhos, em nome da religião. Bad Faith mostra como a recusa da medicina com base na religião “não é apenas imoral e insensata, é uma rejeição do que os próprios ensinamentos religiosos têm a oferecer”, explica o autor.
Offit relata que leu diversos livros defendendo que a religião é ilógica e potencialmente nefasta. Depois, mudou o alvo da sua atenção e decidiu ler o Novo e o Velho testamento e, diz o próprio, seria fácil chegar à mesma conclusão. Mas não, ele acabou acolhendo diversos ensinamentos religiosos. Segundo Offit, “o Velho Testamento é rico em mitzvahs, ou boas ações (literalmente, mandamentos), dizendo de forma clara que devemos honrar nossos pais, família, amigos, vizinhos, e estranhos com atos de altruísmo”. O Novo Testamento não é muito diferente. O problema não está nos ensinamentos, mas na forma como as pessoas os interpretam.
São diversos os casos relatados por Paul Offit no início do livro Bad Faith que ilustram a interferência da crença na medicina, as mortes causadas por preterir o tratamento clínico e preferir apelar à intervenção do divino. Cientistas Cristãos que rezam pela cura em vez de ir no médico, mortes de crianças pela recusa dos pais em levar no hospital, transfusões de sangue não autorizadas por testemunhas de Jeová, um aborto realizado num hospital católico que valeu o corte de relações decretado pelo bispo local e proibição da realização de missas na capela do hospital, contágio de herpes pelo uso de ferramentas de circuncisão contaminadas usadas em rituais de judeus ultraortodoxos, surto de tosse convulsa na Califórnia, caxumba em Nova Iorque, ou sarampo na comunidade Amish do Ohio, todos casos verídicos, alguns de fácil prevenção através de vacinas, e que ilustram esse lado negro da religião enquanto obstáculo da saúde e da medicina.
Nenhum médico escreve atualmente com mais paixão e coragem sobre o impacto de charlatanismo, fanatismo, publicidade agressiva, e má ciência, na saúde das nossas crianças do que Paul Offit. Bad Faith é outro excelente exemplo, expondo os perigos do extremismo religioso em negar cuidados médicos básicos e tratamento que salvam vidas aos mais vulneráveis entre nós. Isso não é uma discussão contra a religião, longe disso. Profundamente comovente, escrito com elegância, Bad Faith expõe brilhantemente os danos causados por sistemas de crenças que foram distorcidos.
David Oshinsky
Vencedor do Prêmio Pulitzer com “Polio: An American Story” e Diretor da Division of Medical Humanities da New York University Medical School
Tragicamente, todo o ano existem crianças sofrendo e morrendo de doenças com tratamento e, na maioria dos estados norte-americanos, há um manto legal cobrindo os pais que negam tratamento dos próprios filhos por motivos religiosos. Offit centra uma boa parte do livro analisando o que acontece nos Estados Unidos, não apenas no que respeita aos pais, mas à lei.
E ele aponta o dedo a dois homens da administração Nixon H. R. Haldeman and John Ehrlichman, que ficaram famosos pelo seu envolvimento no escândalo Watergate, ambos Cientistas Cristãos. O caso remonta a 1957, quando Lisa Sheridan, de 5 anos, morreu de pneumonia. Sua mãe, Dorothy, também ela Cientista Cristã, trocou os antibióticos pela oração. A autópsia revelou uma grande quantidade de pus no peito da criança e Sheridan foi acusada de homicídio pelo Ministério Público. A pena foi de 5 anos em liberdade condicional. Nesse mesmo período surgiu a Child Abuse Protection and Treatment Act (Capta) e os anciãos da igreja dos Cientistas Cristãos recearam que os holofotes do caso incidissem sobre o seu modo de vida. Foi aí que decidiram recorrer a Haldeman e Ehrlichman. O resultado foi um anexo que imunidade religiosa na Capta: “Nenhum pai ou tutor que de boa-fé esteja fornecendo um tratamento a uma criança exclusivamente por meios espirituais – como a oração – de acordo com os princípios e práticas de uma igreja reconhecida através de um profissional devidamente acreditado pode, só por essa razão, se considerar que tenha negligenciado a criança”.
O professor universitário indica o Canadá e o Reino Unido, onde não existe qualquer cláusula religiosa para negligencia médica e é excepcionalmente raro ocorrer morte infantil causada por cura de fé. Nos EUA, encontrou Rita Swan, que se dedica a desfazer o fruto da ação de Haldeman e Ehrlichman, juntamente com o marido. Ambos criaram a Child: Children’s Healthcare Is a Legal Duty, uma organização que, até hoje, já conseguiu que imunidade religiosa fosse eliminada em 5 estados.
No Brasil, está previsto no Código de Ética Médica que o paciente tem autonomia para decidir, após esclarecimentos dos riscos e consequências, qual o tratamento médico, mas diz também que é dever do médico se utilizar de todos os meios para curar a enfermidade e salvar a vida de seu paciente. A Constituição Federal e o Estatuto da Criança e do Adolescente protegem crianças e adolescentes de qualquer situação prejudicial, sendo “dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida e à saúde…”e “dever de todos prevenir a ocorrência de ameaça ou violação dos direitos da criança e do adolescente”.
O livro é mais do que uma exposição de casos, é bem diferente da tradicional acusação da religião, que a mostra enquanto obstáculo da medicina. O pediatra conclui que ser religioso é ser humano. Paul Offit torna claro que os ensinamentos religiosos levaram, ao longo da História, “ao auxílio dos desfavorecidos, à ajuda dos pobres e famintos, ou a um teto para os desalojados”. Mesmo reconhecendo o papel positivo da fé no divino e da religião, é necessário acabar com a figura legal que concede um estatuto de isenção religiosa à negligência médica. Offit quer, com o livro BadFaith, juntar-se a pessoas como Rita Swan para alertar e despertar consciências.
Bad Faith: When Religious Belief Undermines Modern Medicine
Basic Books
272 páginas
Kindle US$18.99
Impresso $20.96
Audiobook $23.27